sábado, 10 de agosto de 2013

UM TEXTO DE CACÁ DIÉGUES

Notícias de um condenado

Cacá Diegues
Graças a um secretário de estado com consciência social e o sentimento do mundo, o Rio de Janeiro adotou uma política de segurança pública com a ocupação permanente das favelas por tropas de policiais militares preparados para isso.
José Mariano Beltrame inventou as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, que já ocupam dezenas de comunidades cariocas das quais foram afastados os traficantes de drogas com suas armas de guerra.
Às UPPs devemos a contenção do crime organizado, a queda do número de homicídios nas favelas e o início de um exercício possível de cidadania por parte de sua população.
Bem antes dessa mudança, uma nova geração de moradores tomara consciência de que a favela não era o problema da cidade e sim o contrário — a cidade é que era o problema da favela. E começou a se manifestar em defesa de seus direitos e valores cidadãos, exigindo do estado saúde, educação, saneamento, emprego, segurança, cultura, enquanto prestava serviços diversos às suas comunidades.
Organismos coletivos foram se organizando ao longo das últimas décadas, a maioria se impondo pela produção cultural poderosa que sempre acaba contaminando o asfalto com sua arte e seu comportamento originais.
Ao longo do tempo, acompanhei de perto algumas dessas organizações, quatro delas foram parceiras decisivas para a produção do filme “5XFavela, agora por nós mesmos”. Cada uma delas faz hoje sua travessia do abandono à afirmação cidadã.
Uma das mais antigas, a Cufa (Central Única de Favelas), surgiu na Cidade de Deus com atividades culturais. Celso Athayde, seu fundador, se ocupa hoje em montar umaholding de investimentos nas comunidades, incentivando seus moradores a se tornarem empreendedores.
Ele identificou uma área de economia de favela que chamou de “Setor F”, um projeto de afirmação social, política e cultural, criando condições para que todos sejam, não apenas consumidores, mas também produtores dos bens que consomem.
“A favela não é só um lugar de carências”, diz Celso Athayde, “mas deve ser também um lugar de oportunidades”. Para isso, monta um instrumento de ação para incrementar essa “economia social compartilhada”.
O Observatório de Favelas, no Complexo da Maré, área ainda não beneficiada por UPP, luta contra a violência simultânea do tráfico e da polícia. Em busca de traficantes, a PM invade sistematicamente as ruas e as casas da Maré e, sem distinguir o bandido do morador, acaba por criminalizar as associações locais.
Esse tipo de lógica tem que mudar, “pois a defesa da dignidade humana e da vida são, acima de tudo, uma obrigação do estado”, como diz Jailson de Souza, coordenador do Observatório de Favelas. Apesar disso, crescem os serviços prestados por essa organização, inclusive na formação profissional de jovens daquela vasta comunidade de muitas favelas.
Em contraste com essas dificuldades comuns a todas as favelas, Guti Fraga, responsável pelo Nós do Morro, coletivo sediado no Vidigal, acaba de ser nomeado pela ministra da cultura, Marta Suplicy, presidente da Funarte. O que deve ser saudado como um reconhecimento da importância do que tem sido criado nessas comunidades e da maturidade que essa criação alcançou.
A organização que mais precisa de nossa atenção nesse momento é o Grupo Cultural AfroReggae. O GCAR se destacou, ao longo de muitos anos, por seu trabalho na mediação de conflitos reconhecido em todo o mundo, inclusive pela Unesco. Na ocupação militar do Complexo do Alemão para implantação de UPPs, o coordenador do grupo, José Junior, foi decisivo para evitar trágicos massacres de ambos os lados.
Nascido em Vigário Geral, o AfroReggae atua hoje em várias favelas do Rio de Janeiro, tirando bandidos do tráfico (sobretudo os jovens que para lá foram por falta de outras oportunidades). Ele administra um sistema de empregabilidade para os que deixam o crime ou estão saindo da prisão, ressocializando ex-bandidos e traficantes como, entre muitos outros, Fofo de Parada de Lucas, Tuchinha da Mangueira, Ziquinho de Acari, Claudio Piuma da Vila Cruzeiro.
É Piuma quem diz: “É realmente verdade que o ser humano consegue sobreviver e suportar qualquer tipo de miséria neste mundo, contanto que não lhe roubem a esperança de um dia ser feliz. Ser AfroReggae é ser do bem e fazer o bem, ajudar a todos sem discriminação de cor, raça ou religião.”
O AfroReggae precisa de nosso apoio objetivo. Seu coordenador, José Junior, um herói desta cidade, foi “condenado” à morte por chefões do tráfico como Fernandinho Beira-Mar e Marcinho VP. A sede do grupo na Vila Cruzeiro, onde são mantidos dormitório, creche, escola para crianças e atividades artísticas, foi cravada de tiros seguidos de ameaças de morte a quem participasse de suas atividades. Junior se recusa a fugir: “Se eu deixar o Complexo do Alemão, vou estar dando a vitória ao crime. Os tiros contra o AfroReggae não são um sinal de força e sim de fraqueza.”
O próprio Beltrame sempre nos advertiu de que as UPPs não vão resolver todos os problemas das favelas. Com elas, o tráfico perde seu poder sobre a comunidade. Mas, para que violência acabe de uma vez, é preciso que os serviços básicos, a que todos temos direito, também subam os morros. As UPPs são um patrimônio intocável da cidade mas, como diz Beltrame, “é preciso olhar para trás e ver o que melhorou, e também olhar para a frente e ver o tanto que ainda falta fazer”.
A sociedade tem que proteger José Junior e abraçar a causa do AfroReaggae, como se estivesse abraçando e protegendo a ela mesma. Se não formos capazes disso, não mereceremos viver numa sociedade justa. Não se esqueçam de que não são apenas as armas, o dinheiro e o poder que mudam — as mentes também podem mudar o mundo.

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