A MENINA DOS OLHOS DE XIMBRA
Certa tarde, meados de 1965, a
jovem apareceu. Eu era Oficial de Dia na Segunda Cia de Guardas, quarta-feira,
dia de visita, recebendo as famílias de presos políticos, ela visitava o pai,
preso político, recém transferido do 14º RI.
Desde o primeiro dia me encantei com
os olhos cinzas, pareciam duas ximbras (bola de gude) de minha infância. Duas
ximbras, duas contas pequeninas, duas pedras preciosas. Cabelos louros batiam
nos ombros, esvoaçavam ao vento, nariz arrebitado, ajudavam o belo sorriso a
contagiar a áurea da felicidade de quem tem 17 anos.
Nossos olhos, nossos sorrisos, se cruzaram
várias vezes. Fiquei rodando a sala de visitas sem necessidade, aliás, havia
necessidade, olhar aquela bonita menina, prolonguei o tempo da visita. Na hora
da despedida, o pai agradeceu a gentileza, ela apertou-me a mão olhando nos
olhos, “Obrigada, tenente”.
O tempo e o convívio tornaram-me amigo
dos presos, mandavam recados, pediam alguma coisa. Às vezes eu me encontrava com
seus familiares, minha modesta contribuição, um bilhete, uma notícia,
necessidades para que levassem nas próximas visitas, coisa amena no meu
entender, contudo, de uma extraordinária importância para eles, só depois tive
consciência de minhas traquinagens clandestinas, generosas.
Nunca alguém pediu um favor no contexto
político. Até porque eu poderia ser espião ou coisa parecida. Na verdade os
comunistas tentavam revolucionar o mundo implantando a ditadura do proletariado,
entretanto, a maioria dos presos eram cidadãos idealistas, liberais, tinham
seus empregos, exerciam sua cidadania, vontade de mudar o mundo, um Brasil
melhor, mais justo, convergiam com os meus ideais.
Na segunda-feira recebi recado
solicitando comparecer à noite no Restaurante Torre de Londres, Parque 13 Maio,
Centro do Recife.
Ao
chegar alegrei-me ao ver a menina dos olhos de ximbra junto às famílias dos
presos políticos. Eu ouvia atentamente os recados, olhando disfarçadamente a
bela jovem. Os familiares perceberam meus olhares com o rabo do olho para a
menina dos olhos de ximbra.
Tudo aconteceu depressa, em pouco tempo
eu estava namorando de mãozinhas dadas na porta de sua casa. O tenente
namorando a filha de um preso político, seu carcereiro na prisão do quartel da
Segunda Cia de Guardas
Amigos souberam do inocente namoro, um
tenente comentou, eu tinha coragem de mamar em onça, aconselhou, acabe o namoro,
tem tanta menina no Recife, não falta namorada. O preso, pai da moça, ficou
meio arredio quando soube, não gostou, foi contra o namoro. Nosso romance
tornou-se o "Romeu e Julieta"
chinfrim do início da ditadura.
Não me importei, continuei frequentando a
casa da namorada. Nos dávamos bem, namoro ingênuo, infantil para os dias de
hoje, entretanto, pra mim era importante, precisava do ambiente familiar, de
uma namorada decente, eu só andava em casas de mulheres, viciado em rapariga.
Passaram-se três meses, certo dia fui
chamado ao IV Exército, falar com o general comandante. Eu tinha certeza do motivo.
Ao vê-lo me apresentei, baixei a continência, ele perguntou.
-"Tenente,
tenho informações que você está namorando a filha de um preso político, preso
na Segunda Cia de Guardas, seu quartel.
É verdade ?"
-
"É verdade sim senhor."
- "Tenente, tenho outras informações
confidenciais sobre sua conduta com presos políticos, mas esse namoro não
admito. Não admito que um tenente do meu Exército, verde oliva, namore a filha
de um filha da puta de um preso político, comunista. Acabe esse namoro... Pode se retirar."
Fiz a continência devida, dei meia volta,
bati com o pé direito no chão, caminhei
em passos normais, ao chegar perto da porta, sentindo-me covarde, humilhado,
voltei ao general, saiu instantaneamente o desabafo.
- "General,
com todo meu respeito, esse assunto é minha vida particular, cabe a mim decidir,
não acabo o namoro."
- "Saia daqui agora mesmo! " Gritou o general
vermelho de raiva.
Coincidência ou não, uma semana depois, foi
publicada no Noticiário do Exército minha transferência do Recife para a
Amazônia, aonde passei dois anos de minha vida na fronteira de Roraima entre
índios. Castigo maravilhoso, inesquecível minha época de selva. As amazonenses
fizeram esquecer a menina dos olhos de ximbra.
(fragmentos do livro, "Confissões de um
Capitão", breve em 2ª edição e edição em espanhol)
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